O PIREU INFECTOU ATENAS

Estamos ainda muito longe de compreender a miopia nacionalista que se abateu sobre nosso país nos anos cinquenta do século passado. Padecer os efeitos dela, sim, ainda padecemos muito;  mas não chegamos a compreendê-la. 

Foi algo como um tanque de grandes dimensões, cheio de água até o alto, água limpa, mas ainda assim suscetível de causar graves danos à saúde, e até a morte. Vários de nossos melhores intelectuais  mergulharam nesse tanque com uma coragem que lindava com a nobreza. Indômitos e briosos, mergulhavam também no passado, decididos a decifrar os labirintos por onde seus ancestrais  letrados haviam andado. Invariavelmente concluíam que aqueles haviam sido importantes precursores, mas não se haviam alçado à altura do nacionalismo, ou seja, não o haviam assimilado como a ideologia sine qua non de nossa emancipação nacional, que haveria de resultar da combinação dele com a empresa estatal e a industrialização.    

Entre esses que se dedicaram  a essa mineração intelectual nos anos cinquenta, merece destaque Barbosa Lima Sobrinho, ex-presidente da Academia Brasileira de Imprensa. Um de seus livros poderia ter sido uma obra realmente superlativa, mas ficou um pouco aquém disso. Esse “poderia” é um deságio que sou forçado a fazer devido a alguns senões que determinaram fortemente o sentido de seu livro Presença de Alberto Torres - Vida e Pensamento, publicado em 1968 pela Editora Civilização Brasileira.  

Alberto Torres foi ministro do Supremo Tribunal e governador do Rio de Janeiro. Nenhum escritor do início do século devotou-se como ele à causa da construção de uma nação brasileira. A intensidade de seu sentimento nacional não tem paralelo.    Uma lástima seu biógrafo não ter dado aos subterrâneos teóricos da obra a mesma atenção que dedicou à descrição da superfície factual, vale dizer, um primoroso relato  biográfico da trajetória vital de Torres. Reproduziu esplendidamente a caudalosa retórica de Torres, mas não recorreu, como deveria, à lógica, ou seja, ao arcabouço intelectual subjacente. Constataria sem dificuldade que a formação analítica de Torres se assentava sobre no evolucionismo darwinista, no positivismo comteano e análogos, e contraditoriamente, sobre o conservadorismo social que em geral se associa a tais orientações filosóficas.   Serei breve em alguns trechos que vou citar a título de ilustração, frisando enfaticamente que eles não menoscabam o conjunto da obra. 

Como é comum em estudos inspirados no evolucionismo do fim do século 19, a metáfora-chave empregada por Torres  é o contraste entre organização (entendido o termo como uma referência ao mundo natural, como o crescimento natural de uma árvore ou de um animal) e desorganização, referindo-se este à indistinção de linhas estruturais, para a indiferenciação de órgãos – vale dizer, para a inorganicidade. Essa dicotomia é um dos principais senão o principal  veículo através do qual se exprime uma consciência da história brasileira como uma carência de passado, ou como degradação de um passado que, mesmo quando visto positivamente, não se pretende nem se deseja recuperar,  que cedeu lugar ao vazio, ao amorfo, ao invertebrado, à carência de centro, de vontade e de direção. 

Nas filosofias opostas ao evolucionismo biologista,  a ideia de organização associa-se ao princípio geométrico, quero dizer, à forma mecânica que se pode imprimir externamente num material, numa máquina que se pode fazer e desfazer, e que, portanto, não resulta das propriedades de um ser natural, ou do desenvolvimento de um princípio já contido em sua origem. A organização consciente, racional, fundada no conhecimento verdadeiro, culmina num fazer deliberado, orientado por uma vontade e uma direção. Isso, segundo Torres, é o que não temos e nunca tivemos. 

No debate sobre a formação política brasileira, esse “organismo” natural não chegou a se constituir. Desagregou-se a meio caminho, entrou em decadência e não poderia ter outro destino senão o completo desfazimento. No cerne, portanto, do pensamento de Torres e de quase todos os letrados do início do século passado, há uma gritante contradição: conservadores do ponto de vista social, do aconchego de uma sociedade tradicional, eles também cogitam uma nação poderosa, construída, capaz de se igualar aos países tecnologicamente mais avançados do  mundo. No que toca ao modelo político desejável para o país, queriam um sistema que impedisse o conflito em todas as suas formas, e cada vez mais o conflito capital X trabalho,  mas que fosse uma obra natural de nosso país, não uma “importação” do liberalismo europeu ou norte-americano; merece um prêmio quem neles encontrar uma página que não vitupere a nossa mania de vestir o país com uma forma que pode ser perfeita no plano jurídico, mas que não lhe serve, dado lhe faltar o atributo essencial da organização entendida como evolução natural. Importada, a forma política liberal (que mais tarde será chamada de democrática) permanece externa, não penetra nem se intromete nos tecidos da sociedade, e assim não lhe infunde o ânimo da organicidade, o impulso evolutivo no sentido de encontrar a forma a que está destinada. 

A República e a Abolição como decadência

Conservador por formação e quem sabe por instinto, o ex-abolicionista Alberto Torres não hesita em qualificar a República e a abolição como frutos de um simples mimetismo que impedia nossa organização nacional, mantendo-nos num estado de debilidade e vulnerabilidade ao domínio das nações mais poderosas. 

 “Nas finanças, na administração, na justiça, na ordem política, na moralidade administrativa, na instrução, o declínio é manifesto; e só se compreende que  contestem esta assertiva) porque o hábito da vida em desordem nos está varrendo dos espíritos os critérios que formavam a base da nossa consciência social: a sinceridade, virtude profunda e ingênita em nossos maiores [...]  (AT, O problema nacional brasileiro, págs, 37-38).

Menos desastrosa, talvez, que a República, tampouco a Abolição correspondeu àquela que havia sonhado. Mas que abolição havia sonhado? Justiça abstrata, redenção humanitária, sem prejuízo ou perturbação para a organização das atividades produtivas? É o que sugere a comparação das obras da juventude com as da maturidade. Enquanto o aprendiz de poeta, com 17 anos incompletos, justificava a revolta do escravo – “O que não fez a dor/a lágrima, o perdão, os bálsamos do amor/e a tristeza cruel, horrível, contraída/fez o rudo punhal e o braço do homicida” – o ensaísta adulto, ciente de que “o negro é, de há muito, uma das caricaturas do humorismo literário”, discursa sobre a escravidão sob um prisma totalmente diverso: 

“A escravidão foi  uma das poucas coisas com visos de organização que este país jamais possuiu; nas aéreas instituições políticas que temos tido, as boas intenções do segundo monarca, a honestidade e o saber de seus ministros, não conseguiram fazer descer para o nível dos fatos a nuvem luminosa das doutrinas adotadas... Social e economicamente, a escravidão  deu-nos, por longos anos, todo o esforço e toda a ordem que então possuíamos, e fundou toda a produção material que ainda temos”. Por aí se vê que a saudosista referência aos “bálsamos do amor” não foi mero recurso literário; correspondem ao sentido profundo da visão sobre o escravismo no Brasil, ao paternalismo como experiência vivida. Este reaparece na continuação do parágrafo acima citado: “a moral dos costumes [da escravidão] foi superior à das relações desapiedadamente cruas dos anglos-saxônicos com os pretos e indígenas, nos Estados Unidos” [...]. Decadência cultural, desorganização das atividades produtivas, desordens políticas. Mas o remate de sua (re)visão conservadora se manifesta de uma forma ainda mais contundente em sua percepção da migração para as cidades, do crescimento destas, da multidão que se mudava para as cidades em busca de meios de sobrevivência. Para Torres, a essa altura, esse movimento reflete uma dissolução moral (AT, O problema nacional brasileiro, págs. 72-75). Como corrupção dos costumes da roça no contato com os da cidade: “as praias, os portos, as fronteiras, as cidades à beira-mar e cosmopolitas, os povoados à margem das grandes vias de comunicação,  pousos de marujos, de aventureiros, e de viajantes em jornadas de ambição, e em férias, pelo menos de disciplina social, são, em toda a parte, zonas mistas de difusão e desagregação social, áreas de invasão de costumes fáceis e de perversão dos caracteres... O Pireu infectou Atenas”.

Texto de Bolívar Lamounier. 

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