UM BICO-DE-PENA SOBRE AS ELITES BRASILEIRAS

Em abstrato - e deixando de lado as tradicionais louvações e a ideia de “aristocracia” -, elites são o agregado estatístico que se corporifica no ápice  das diferentes hierarquias que cimentam a espinha dorsal da sociedade. Esta formulação pode ser expressa de uma maneira mais realista e precisa se observarmos que o poder econômico ou político não se distribui de maneira uniforme entre tais hierarquias. 

Exemplificando: um indivíduo de alta escolaridade, mesmo possuindo diplomas de pós-graduação por uma das melhores universidades do mundo, pode estar (e geralmente está) muito abaixo dos segmentos mais poderosos: da “super-elite”. Direi mesmo a uma distância sideral abaixo de tais segmentos. A imagem realista da elite “superior”, aquela que abrange toda a sociedade é, pois, a de uma pirâmide dotada de um ápice muitíssimo mais elevado. O universitário que dei como exemplo raramente conhece e tem acesso aos integrantes daquele ápice superior. 

Ele pode se caracterizar – como ocorre em todas as hierarquias – por certa exemplaridade; e devo aqui repetir que não estou louvando nenhum grupo de poderosos. Exemplaridade significa personificar valores (ou mesmo ambições) que a sociedade considera positivos.   Num passado distante, a exemplaridade expressava-se principalmente na aptidão para o manejo das armas, ou seja, na carreira militar, e era representada sobretudo pelas aristocracias. À medida que os Estados e exércitos nacionais se consolidaram, essa conotação desapareceu. 

Como, então, sustentar, com base em critérios objetivos, que possam existir, acima das elites “médias” (das quais os PhDs são um bom exemplo), elites muito mais elevadas, poderosas (e obviamente muito menos numerosas?) 

Um critério adequado parece-me ser o do acesso a todo e qualquer indivíduo ou liderança no país que estejamos considerando. Graficamente, podemos sugerir que  uma linha imaginária separa as elites médias, comuns, das super-elites, aquelas que se situam muito acima delas. Os integrantes das elites de cima têm acesso – quero dizer, têm condições de falar no momento que lhes aprouver, bastando-lhes para tanto espichar o braço e pegar o telefone, com qualquer outra liderança (institucional ou não) da sociedade, diferentemente dos integrantes das elites médias, cujo acesso a alguma autoridade elevada ou mesmo a um empresário de peso requer prévia solicitação de uma audiência.   No Brasil e de modo geral na América Latina, um doutorado por Harvard é    mais que suficiente para alçar um indivíduo à elite média. Mas, para ultrapassar tal barreira e atingir o status de super-elite, é mister viver numa mansão, possuir uma casa de campo, talvez também  uma no litoral e outra na Europa e, quem sabe, um iate que dificilmente sairá por menos de dez milhões de dólares. Há, entretanto, uma importante recíproca: possuir um super-iate não quer dizer que  proprietário tenha exemplaridade. Bem ao contrário, ele pode ser um perfeito canalha, ou um sujeito indiferente, que não está nem aí para os valores e objetivos que a sociedade reverencia e quer ver realizados. 

Mas isto ainda é dizer pouco. Um empresário industrial comum – digamos, o presidente de uma dessas federações que Getúlio Vargas nos deixou como herança - sem dúvida integra a  elite, e é plausível supor que se situa bem acima do nosso hipotético PhD por Harvard. Situa-se, porém, em geral,  bem abaixo da  “super-elite”, aquela do iate de dez milhões de dólares. Pode ou não possuir  o atributo que chamei de exemplaridade. Esse, no meu entender, é o busílis: um dos grandes problemas políticos do Brasil. Vou destacar três aspectos. Primeiro, a desigualdade de que tanto falamos é aterradora, indescritível, na base da sociedade, mas existe também, por incrível que pareça, da elite universitária (jornalística, clerical etc) para cima. Do PhD ao proprietário de um iate há uma exponencial tão arretada que nem enxergamos o ápice do ápice. 

Dessa desigualdade entre o segundo, o terceiro e o quarto andar decorre que essa turma mal se fala, raramente se comunica, não faz esforço algum para conceber um ideal de país, uma visão de uma sociedade mais habitável. Terceiro, e decisivo, é a relação dessa elite, considerada nos três níveis, é capaz de compensar a debilidade das instituições formais, aqui entendida nos três níveis. Trata-se de uma incapacidade estrutural, mas não custa assinalar que, nesse grupo de incapazes, há também numerosos calhordas. Se tivéssemos uma elite algo mais coesa e algo mais exemplar, populistas e demagogos -  ainda mais demagogos expulsos das Forças Armadas por indisciplina -, dificilmente chegariam a ocupar a poltrona principal do quarto andar no Palácio do Planalto. 

Como todo o país, o leitor certamente é testemunha desse triste quadro que temos vivido, assustados pela força das águas rompendo barragens,  rachando penhascos e provocando pavorosos deslizamentos. Em grande parte, tais tragédias devem-se ao destino, ao mau humor da natureza. Mas devem-se também à incúria, ao desmazelo, à irresponsabilidade de muitos que poderiam atuar como arrimos, reforçando as barragens, tanto as naturais como as institucionais, reforçando a estabilidade e exigindo um melhor desempenho dos titulares mais altos dos três Poderes. E quanto a isso, não nos enganemos: barragens continuarão a romper, a TV ainda vai nos mostrar muitas cenas trágicas, e não estaremos garantidos contra retrocessos e rupturas em nossa vida pública. Se o que foi dito até aqui ainda não é suficiente como alerta, convido o leitor a imaginar como estará nosso país daqui a  vinte anos. O que nos garante que o PIB (a soma dos bens e serviços produzidos ao longo de um ano) crescerá mais rapidamente que o número de quadrilhas de traficantes e assassinos?

Texto de Bolívar Lamounier.

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