NOS OMBROS DE DOIS GIGANTES

Caros leitores e leitoras: vocês que tiveram a sorte de se enfronharem  na história da antiguidade, devem se lembrar da marcante presença de dois gigantes - Parmênides e Heráclito -  nos primórdios da filosofia grega. Eles não trataram da democracia ateniense, mas a contribuição que prestaram permanece essencial para tentarmos entender essa que, bem ou mal, desfrutamos no século 21. 

Parmênides argumentava que uma coisa é aquilo que essencialmente a caracteriza. Por exemplo, um rio é um curso d’água, é água se movendo entre um ponto (sua nascente) e outro (seu estuário). Essa é sua essência imutável. Se assim não fosse, seria um lago, um açude, qualquer coisa, mas não seria um rio. O Amazonas e o Nilo, imensos, são rios, assim como o é o nosso modesto Tietê. Heráclito contestava a pretensão parmenidiana de compreender  uma coisa, uma realidade qualquer, no plano abstrato,  somente pelos traços que a fazem ser o que é. No mundo real, tudo muda, o que ontem era um curso d’água hoje é outro curso d’água, aquele já passou. Daí sua estranha, mas penetrante afirmação: “nós nunca nos banhamos duas vezes num mesmo rio”. 

Pode parecer um jogo de palavras, mas não é; e digo mais, a contraposição dessas duas ideias faz muita falta em nosso interminável, confuso e não raro perigoso debate sobre a democracia representativa. No plano abstrato em que se situava Parmênides, o ponto de partida é este: democracia é o sistema político no qual cidadãos particulares só podem ascender a posições de autoridade pública mediante eleições periódicas, limpas e livres. Claro, a partir deste ponto temos que falar em liberdade de expressão, liberdade de imprensa, proteção aos direitos humanos etc. Os contendores têm que aceitar lealmente os resultados das votações. Mas meu enunciado inicial é suficiente para estabelecer o modo parmenidiano de pensar. 

Entre as definições empregadas pelas muitas instituições que monitoram o estado da democracia no mundo atual, prefiro a da Freedom House, que se atém ao que diz o meu enunciado.  A EIU (Economist Intelligence Unit), divisão da revista inglesa The Economist, faz um trabalho estatístico esplêndido, mas tende a “afrouxar” demais o conceito de democracia, acrescentando-lhe outros requisitos, e outras há que o descaracterizam completamente, dizendo, por exemplo, que democracia só existe onde há igualdade social (quer dizer, em nenhum lugar) e, portanto, que eleições não importam.

Do ponto de vista parmenidiano, a democracia existe ou não existe em cada país; não há que falar em qualidade ou “grau” de democracia. De fato, não. Por isso o ponto de vista da EIU é decididamente heraclitiano. Democracias nascem, crescem, sofrem retrocessos e até colapsos, transformando-se em ditaduras, ou seja, são como rios em constante movimento, não como pequenos açudes parados, sempre iguais a si mesmos. Há vários anos, a imprensa do mundo inteiro tem discutido se a democracia está piorando, se está em crise e até se estará morrendo. Em seu último relatório, de 2020, intitulado “In sickness and in health?” (“Na doença e na saúde?”), a EIU afirmou taxativamente que a maioria das democracias do mundo inteiro está sofrendo um retrocesso avassalador, consequência das medidas duríssimas que dezenas de governos tiveram de tomar para combater a Covid19, medidas que não seriam aprovadas se os cidadãos de cada país fossem consultados em algum tipo de plebiscito. Um tremendo exagero, convenhamos. Uma boa conversa com Parmênides reporia as coisas em seus devidos lugares.

Texto de Bolívar Lamounier 

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