UMA BREVE REFLEXÃO PRA FECHAR ESSE ANO HORROROSO

O termo “cultura” é empregado em centenas de sentidos, ao contrário de “alta cultura”, que se refere especificamente à literatura, à música clássica, enfim à ciência e às artes em geral. 

Sabemos todos que, para o bem e para o mal, a alta cultura mantém relações estreitas com os regimes políticos.  Em sua edição digital de dezembro, a revista Foreign Affairs trouxe um esplêndido artigo intitulado The Art of War – Can Culture Drive Geopolitics?, (A arte da guerra – a cultura é capaz de impedir tendências negativas na geopolítica?) assinado por Beverly Gage. 

Observem que a autora inverteu a questão tradicional. O que ela pergunta é se a alta cultura consegue se organizar e agir a ponto de alterar dadas situações políticas, rechaçando os que só pensam em semear as sementes do mal. 

Com certeza não é um fato comum, mas acontece e o mais notável, para a autora, parece ser a atuação dos liberais norte-americanos após a Segunda Guerra. Ao mesmo tempo em que o “macarthismo” - a extrema-direita alinhada ao senador Joseph McCarthy empenhava-se em aterrorizar o país,  invocando uma suposta infiltração soviética em todos os escaninhos do governo, numerosos integrantes da alta cultura – escritores, músicos, jornalistas etc – cavaram trincheiras para rechaçar a paranoia orquestrada pelo senador de Wisconsin.  Passaram a destacar na tradição liberal  o que ela tem de melhor : a capacidade de se autocriticar, apontando não só as qualidades, mas também os defeitos do país, e se dedicaram com determinação ao objetivo de tornar as universidades americanas as melhores do mundo. 

Nas décadas subsequentes, a imagem dos Estados Unidos como líder de um mundo democrático ficou seriamente manchada não só pelo persistente racismo, mas por equívocos graves, como intervenções no Terceiro Mundo em nome do combate ao comunismo e a guerra no Vietnam. Atualmente, com a determinação da China a se tornar  uma superpotência científica e tecnológica, o foco norte-americano teve que se alterar no mesmo sentido, tornando improvável  uma floração liberal como a dos anos cinquenta.       

No Brasil, a alta cultura é exígua, devido ao número relativamente pequeno de grandes criadores de ciência e arte – Villa-Lobos é a exceção que confirma a regra -, mas também porque alguns deles se mostraram bastante lenientes com nossos interregnos ditatoriais. Esse triste quadro vem se perpetuando nas universidades e no meio estudantil, nos quais o legado intelectual sempre foi uma lamentável mescla de crenças autoritárias e asneiras. Assim, esses setores, que deviam corporificar nossos ideais de liberdade, desenvolvimento e bem-estar, sempre atuaram de forma sinuosa, dando uma no cravo e outra na ferradura, ou várias na ferradura e uma no cravo. 

Até aqui, martelei a tecla da alta cultura, mas não posso mencionar a imensa riqueza do que fizemos em  atividades, digamos assim, “populares”. O futebol, como todos sabem, teve um papel decisivo na redução do racismo. Sim, estou ciente de que ainda existe racismo e de que o debate sobre essa questão vem se tornando áspera. Mas não podemos perder a perspectiva. A maior parte de nossa população é miscigenada – pardos, morenos, na terminologia do IBGE. Essa constatação inicial leva-nos a outra de suma importância. Desde há muito tempo, os racistas (escancarados ou disfarçados) perderam a legitimidade; esta passou para o lado de quem combate o racismo, não obstante certos exageros que esse lado também comete. 

Em 2015, fiz uma pesquisa junto a 1150 advogados de todo o Brasil, na qual incluí uma pergunta deliberadamente taxativa, diria mesmo provocativa: “Há quem diga que o Brasil é um país racista; o Sr concorda?”. Para minha surpresa, 74% concordaram, e eu mesmo presenciei, participando de entrevistas, que muitos tomavam um certo tempo para pensar. Ou seja, o número citado não reflete uma tendência a responder levianamente, de bate-pronto. Tudo o que observei e estudei sobre esse assunto leva-me a crer que estão redondamente equivocados os que asseveram ser o Brasil mais racista que os Estados Unidos ou a África do Sul. 

Outro ponto de suma importância tem que ver com a música popular. Quem um dia prestou atenção a esse fenômeno haverá de concordar que, desde as origens, no início do século 20, nossa música sempre foi deslumbrante, comparável à dos países que mais se destacam nessa área. Ao longo do tempo, os gêneros e estilos foram se alterando, mas o que percebemos, numa visão de conjunto, é um contínuo processo  de enriquecimento e diversificação. 

É óbvio que o   potencial seria muito maior se a maioria do público não fosse tão carente de recursos. Esse fato, somado a certo grau de picaretagem tanto entre os artistas como entre os burocratas que manejam as verbas públicas, engendrou uma lamentável tendência a pensar que a solução sempre virá de Brasília. Mesmo assim, a qualidade de nossos compositores, instrumentistas e  intérpretes é notável. Os Estados Unidos têm dez milhões de músicos profissionais, mais que toda a América Latina somada. Convenhamos, então, que nós, assim como Argentina, Chile e Cuba (esta com o maravilhoso Buena Vista Social Club), para ficarmos só nestes, saem muito bem na foto. 

Mas é preciso levar esta reflexão mais longe. Nos textos que tenho postado aqui ou publicado no Estadão, tenho insistido em que não só a nossa cultura, mas nossas elites (emprego o termo no sentido sociológico, claro), de modo geral, são exíguas, ou, se preferem, frequentemente indiferentes ou omissas. Elites atuantes, responsáveis e dispostas a participar da vida pública, inspirando-a e baseando-a – como fizeram os liberais norte-americanos nos anos cinquenta do século passado – são essenciais para a estabilidade da democracia e o aprimoramento das instituições políticas. Esse, sem dúvida, é o nosso calcanhar de Aquiles. Adoramos xingar os parlamentares e juízes – e é certo que quase sempre temos carradas de razão ao fazê-lo-, mas uma atuação positiva é também imprescindível.

Texto de Bolívar Lamounier 

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