UM DILEMA BRASILEIRO


O texto abaixo complementa o que postei ontem sob o título de “Um Dilema Brasileiro”. Como aquele, este é também parte de meu livro “Tribunos, profetas e sacerdotes”. A expressão “um dilema brasileiro” é uma paráfrase do título do grande livro de Gunnar Myrdal, publicado em 1944, que exerceu um poderoso efeito no encaminhamento da questão racial norte-americana. Eu, na verdade, quis dizer praticamente o oposto. O dilema americano a que Myrdal se refere é a questão racial. Eu recorri a um pequeno escárnio para lembrar como as nossas elites raramente (nunca, melhor dizendo) tiram um tostão do bolso para apoiar algum projeto de larga escala que ajude a conhecer e dramatizar nossos problemas. Nossos bilionários têm sua fórmula ideal: transfira o que puder para  o setor público (via Lei Rouanet ou universidades de má qualidade) e esqueça o resto. Não se preocupe, o avião pode até cair, mas a primeira classe não cai junto. 

Macartismo: o extremismo de direita dos anos 50 nos EUA

McCarthy não foi o primeiro nem o último demagogo a dramatizar fantasias e temores a respeito da política internacional existentes na sociedade americana. Nos anos cinquenta, o foco de tais representações era evidentemente o comunismo. Nos primeiros anos da Guerra Fria e num país preocupado com o poderio soviético, é fácil imaginar quão intensa haveria de ser a repercussão de uma campanha supostamente alicerçada em fatos comprovados acerca de uma extensa penetração comunista no governo dos Estados Unidos. Na discussão a seguir, farei um breve relato do episódio e das reações intelectuais e políticas que finalmente liquidaram sua credibilidade. 

Sobre a importância e o caráter perverso da atuação de McCarthy, poucos analistas foram tão precisos como Richard Rovere (citado na bibliografia do livro):  

“Ele manteve dois presidentes cativos na condução dos negócios nacionais.  Do começo de 1950 até o fim de 1954, Harry S. Truman e Dwight Eisenhower não podiam agir sem ponderar o efeito de seus planos em McCarthy e as forças que ele liderava; em consequência, houve momentos em que, por causa desse homem, eles simplesmente não puderam agir. McCarthy teve um enorme impacto na política externa americana numa época em que tal política pesava grandemente no curso da história mundial [...]. 

De fato, o episódio McCarthy merece a atenção da intelectualidade latino-americana, tão peculiarmente avessa como ela é a reconhecer a diferença que um só indivíduo pode às vezes fazer. Neste aspecto, esta afirmação de de Rogin é um complemento apropriado à citada passagem de Rovere: “O impacto de McCarthy na política pública foi apenas uma parte de sua influência. Direta ou indiretamente, ele destroçou muitas vidas e pareceu infligir um sentimento de medo e suspeita na vida americana como um todo. Raramente neste país um homem projetou uma sombra tão grande e tão escura”.

Dizer que McCarthy criou a obsessão anticomunista dos anos 1950-1960 seria sem dúvida um exagero – até porque o poderio soviético era uma ameaça potencial muito séria -, mas é dele a responsabilidade maior por haver ativado e elevado à proporção a que chegou.  Realmente, se me permitem a obviedade, o macarthismo foi a expressão em tamanho grande da mesquinha figura que lhe emprestou o nome: Joseph McCarthy, senador por Wisconsin. Eleito pelo ticket republicano em 1946, aos 38 anos, esse ex-advogado, ex-juiz e ex-fusileiro naval na Segunda Guerra exprimiu posições extremistas desde seu primeiro dia em Washington, sem conseguir se livrar da obscuridade a que os novatos ficam relegados no Senado. Sua meteórica ascensão se deu em 1950, quando declarou possuir uma lista de membros do Partido Comunista e de integrantes de uma rede de espionagem entre os empregados do Departamento de Estado. Nos três anos seguintes, a suposta lista estendeu-se a outros órgãos do governo –ao Exército inclusive. Escudado na visibilidade nacional e no poder de chantagem que dessa forma granjeou, McCarthy não vacilou em acusar e exigir a exoneração de um grande número de pessoas - por comunismo ou por homossexualismo. Outro alvo de seus ataques eram as alas liberais (progressistas) dos dois grandes partidos e intelectuais com tal perfil nas principais universidades. Nem Hollywood ficou de fora: o cinema estaria igualmente infestado de comunistas.  

O “pavor vermelho” conjurado por McCarthy atingiria o ápice em 1954, quando setores da imprensa, do próprio meio político e da academia partiram para o contra-ataque, cobrando-lhe provas e passando a combatê-lo com a indispensável determinação. Em dezembro de 1954, numa votação contundente, o Senado aprovou contra ele uma moção de censura, instrumento raras vezes utilizado pelo Legislativo americano. Desse ponto até 1957, ano de sua morte, McCarthy só fez despencar em credibilidade e prestígio. 

A reação acadêmica que considero decisiva foi o livro Communism, Conformity and Civil Liberties, de Samuel A. Stouffer, publicado em 1954.  Este estudo resultou de um grande projeto apoiado pelo Fund for the Republic com o objetivo específico de respaldar uma resposta política ao avanço do macarthismo . A própria data da publicação diz algo – lembro que 1954 foi o auge da histeria macartista-, mas creio essencial acrescentar aqui alguns elementos indicativos da seriedade e qualidade desse trabalho.   A espinha dorsal do projeto foi uma pesquisa de opinião em nível nacional, envolvendo entrevistas com quase 6 mil cidadãos.  Para possibilitar rigorosos testes de consistência interna e a fim de evitar a utilização de entrevistadores menos capacitados, as entrevistas foram encomendadas não a um, mas a dois dos mais conceituados institutos de pesquisa da época: o American Institute of Public Opinion (Gallup Poll) e o National Opinion Research Center, uma organização sem fins lucrativos associada à Universidade de Chicago.  Um dos subprodutos práticos do projeto foi um denso roteiro para a utilização de seus resultados por quaisquer instituições interessadas em combater excessos anticomunistas suscetíveis de se transformar em ameaças às garantias constitucionais e às liberdades democráticas.  

Quanto aos resultados substantivos, cito abaixo a síntese de Stouffer (págs.220-221), que é auto-explicativa:  

Não encontramos evidência alguma de que o país como um todo esteja tremendo de pavor ou sofrendo de uma ansiedade neurótica em razão da ameaça comunista interna. Os sintomas clínicos são mais indicativos de uma dieta deficiente que de uma doença, propriamente. O cardápio que as pessoas têm sobre a mesa é um conjunto de informações vagas e distorcidas acerca do perigo comunista. Elas tendem a exagerar eventuais conversões de americanos ao comunismo e têm pouca familiaridade ou preocupação com os efeitos maléficos que podem resultar de reações [exageradas] a riscos que de fato existem. Há grandes forças sociais, econômicas e tecnológicas trabalhando no sentido de expor uma parcela crescente da população à ideia de que ‘pessoas diferentes de mim, com valores diferentes dos meus, podem ser boas pessoas também’. Esta não é a única condição da tolerância, mas é uma condição necessária. É um primeiro passo para o reconhecimento de que o respeito aos direitos civis de pessoas que pensam diferente de nós é uma coisa boa para o país”.

Texto de Bolívar Lamounier. 

Comentários

MAIS LIDAS