UM ABOMINÁVEL MUNDO NOVO?

A democracia liberal mal se iniciava e sua morte já era anunciada dia sim e outro também. Um caso de mortalidade infantil.

No momento atual, com o mundo engolfado nessa monstruosa pandemia, ninguém se surpreenderá com o reaparecimento do tema. Agora, já mais que centenária, não há dúvida de que ela integra um grupo de altíssimo risco. Os fatores cogitados como causas do anunciado óbito variam, é claro, e é com eles que nos devemos preocupar. O mais invocado é uma reversão da interdependência mundial, cada país ensimesmando-se, concentrando-se em seus problemas internos  e deixando o resto ao Deus dará. Outra tecla continuamente martelada é a perda de hegemonia dos Estados Unidos, vale dizer, a  debilitação da grande potência do norte em relação às demais – à China, notadamente. Semanas atrás, Henry Kissinger discorreu longamente sobre esse tema, frisando que tal hipótese significaria a liquefação do ideário liberal frente ao férreo totalitarismo asiático. Tudo isso soa razoável no campo das hipóteses, mas se queremos pensar a sério sobre o futuro da democracia  liberal, precisamos de um recuo histórico maior e de mais cuidado com os conceitos.

Nunca é demais lembrar que a democracia liberal-representativa só começa a se configurar plenamente por volta da quarta década do século 19. Até então, com as exceções parciais  da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, o mundo se dividia em países desabridamente autoritários  e em embriões de democracia. Estes existiam em sociedades oligárquicas, nas quais o jogo político limitava-se a pequenos grupos  de elite – proprietários de terra, comerciantes e uns poucos profissionais liberais, como advogados e médicos. A  população habilitada a votar era uma minúscula parcela imersa numa vasta maioria analfabeta, empregada em atividades rurais e completamente excluída da vida pública. 

Um ponto importantíssimo, raramente ressaltado mesmo por renomados acadêmicos, é que esse era o cenário invocado pelos primeiros  críticos do liberalismo, que atestavam o óbito da democracia quando ela apenas engatinhava. Tomando a nuvem por Juno, tais críticos julgavam estar vendo um cemitério, e não o início de uma caminhada cheia de opções e possibilidades.

Tomando só os pontos mais importantes, a segunda pretensão de atestar o óbito da democracia surgiu entre a segunda e a terceira décadas do século XX, na esteira da Revolução Russa e da marcha fascista sobre Roma. O horizonte que agora se descortinava compunha-se de um elenco muito mais complexo, protagonistas sociais de maior peso, entre os quais os sindicatos e partidos ideológicos se destacava. Nesse novo enredo, o leit-motiv era o confronto entre o capital e o trabalho. Resumidamente, podemos pois afirmar que a traço distintivo desse novo quadro era uma abrupta elevação do nível dos conflitos. O segundo atestado de óbito parecia emergir praticamente pronto: a colisão de interesses agigantara-se a tal  ponto que a   capacidade de resistência das “débeis” instituições da democracia não era maior que casquinhas de sorvete. O futuro pertenceria, de um lado,  a ditaduras comunistas, assentadas em sistemas de partido único e, do outro, na violência nua e crua contra a resistência e na organização compulsória dos contendores em corporações, próprias do fascismo. 

No Brasil, o modelo corporativista foi experimentado para inglês ver por Getúlio Vargas, que nunca quis organização nenhuma e sim uma ditadura personalista respaldada pelo Exército. Mas quem lhe deu o cartão vermelho foi o próprio Exército – especificamente os “pracinhas” que haviam combatido na Itália e retornaram convencidos de que o regime de Mussolini era uma grande farsa. 

Finda a Segunda Guerra Mundial, os problemas e atores eram ainda basicamente esses, mas a ideia-força sob a qual a sociedade internacional se reorganizou foi o liberalismo (político e econômico). Desde então, apesar de seus avanços e retrocessos, a democracia liberal permanece como o mais importante princípio internacional para a legitimação do poder. O fascismo do tipo italiano sumiu do mapa e  o comunismo soviético cambaleou por mais 45 anos.       

O segundo pós-guerra, marcado pela Guerra Fria, permanece vivo em nossa memória. Rachou como fendas tectônicas quase todos os países democráticos,   turbinando fatores internos de radicalização política, como foi o caso, no Brasil, da contraposição entre o lacerdismo e o getulismo. Fato é que mesmo países autoritários (como Portugal e Espanha) e outros, democráticos, que haviam recaído temporariamente no  autoritarismo se reergueram. Os elementos internos de conflito que havia em todos eles foram bem ou mal equacionados através da retomada do sistema representativo. 

Nos últimos anos, temos visto por toda parte uma legião de coveiros ansiosos por atestar, dia sim, outro também, o “fim da democracia representativa”. Claro, nada é impossível. Um dia o mundo democrático poderá  sucumbir de vez. 

Mas três afirmações podem ser feitas sem temor de errar. Em escala mundial, essa alternativa antidemocrática será um “abominável mundo novo”, pois será necessariamente totalitário, experiência sobre a qual a Alemanha e a URSS nos ensinaram o suficiente no transcurso do século 20. 

A segunda afirmação é que, por si sós, crises econômicas e baboseiras ideológicas, com ou sem pandemias não provocam rupturas profundas na ordem constitucional  democrática. Estas decorrem da gana de poder de líderes desmiolados, que não se furtam a ameaçar o convívio civilizado nas sociedades que governam. Também aqui, o exemplo brasileiro é relevante. Apeado do poder pelos militares em 1945, Getúlio Vargas, numa entrevista famosa a Samuel Wainer, mandou este recado ao país: “Eu voltarei. Mas não como político. Como líder de massas”. Não é exagero dizer que tal declaração, respondida no mesmo tom por Carlos Lacerda, foi o estopim da radicalização dos anos cinquenta, que desaguou no golpe militar de 1964.       

Aqui chegamos à minha terceira afirmação, referente a um velho equívoco do debate sobre a democracia e o liberalismo. À capenga suposição de que o sistema político liberal só é concebível em sociedades que hajam atingido um elevado nível de desenvolvimento econômico, social e educacional. Ora, nenhum teórico liberal sério jamais afirmou que o regime democrático só seria possível numa sociedade igualitária, constituída por unidades iguais em massa e peso, como bolas numa mesa de bilhar. 

Desde seus primórdios, a democracia, como qualquer outro sistema, teve que enfrentar os dilemas da acumulação de capital (ou seja, o crescimento econômico) e a ordenação ou regulamentação institucional dos conflitos (instituições respeitadas), com as desigualdades e enfrentamentos que deles decorrem. 

Salta aos olhos que o mundo pós-pandêmico terá de enfrentar grandes desafios, mas não necessariamente desafios que ponham em xeque a própria sobrevivência da ordem liberal-democrática. No Brasil, por exemplo, os últimos sessenta ou setenta anos evidenciam equívocos monumentais. O mega-endividamento externo do general-presidente Ernesto Geisel e mais recentemente o criminoso desperdício de recursos com a construção de estádios da era Lula-Dilma, por exemplo. 

Na citada sequência de tolices, não nos demos conta de que nossas prioridades tinham que ser o fortalecimento do setor privado da economia e a destinação  de vultosos recursos para os setores de ciência e tecnologia, saneamento básico, saúde e, naturalmente, educação básica.  Essa reorientação será um imperativo inarredável, em relação ao qual a transparência e as divergências inerentes à  democracia serão uma grande alavanca, e não um obstáculo, como não se cansam de afirmar os idiotas incuráveis e os pregoeiros do autoritarismo.

Texto de Bolívar Lamounier.

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